NÃO PODEMOS DESEJAR, AO MESMO TEMPO, O BEM DAS ALMAS PELA TRADIÇÃO E UMA NOVA IGREJA SEM A TRADIÇÃO.
Transcrição integral da conferênciadada pelo Don Davide Pagliarani, superior-geral da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, no final do XVIº Congresso de Teologia do Courrier de Rome, em parceria com o DICI, no dia 15 de janeiro de 2022, em Paris.
É certo que estamos num momento crucial, num momento ao mesmo tempo triste, mas também numa situação lógica. Chegamos a um ponto que era previsível. É verdade que a Fraternidade São Pio X não foi diretamente atingida pelo motu proprio Traditionis Custodes, pelas razões que os senhores já conhecem. Mas, de fato, por causa da nova situação que se criou, hoje mais do que nunca, a posição da Fraternidade São Pio X se mostrou como a única viável, a única que mostra o caminho.
Não sou a pessoa mais indicada para afirmar isso, mas há fatos que são objetivos, e mesmo evidentes.
Por que isso? Porque os institutos Ecclesia Dei, que foram tocados diretamente por esse motu proprio, não são a Fraternidade São Pio X, é verdade; mas eles existem porque a Fraternidade São Pio X existe. Sua origem, de um ponto de vista geral, está ligada de algum modo à história da Fraternidade; dela dependem, ao menos indiretamente. E, hoje em dia, essa nova situação enfatiza grandemente o alcance do papel da Fraternidade, e de sua missão. E também, inevitavelmente, a necessidade da tradição integral.
A tradição é um todo, porque a fé é um todo. Hoje é preciso, mais do que nunca, a profissão livre dessa fé. A verdadeira liberdade dos filhos de Deus é a liberdade, em primeiro lugar, de professar a fé.
A oposição do Papa Francisco
Aqui abro um parênteses. Falaremos, inevitavelmente, dos institutos Ecclesia Dei, e quero esclarecer que no âmbito pessoal, não tenho nada contra aqueles que pertencem a tais institutos: nem contra os fiéis, nem contra os membros. Estamos completamente fora dessa perspectiva de oposição pessoal. Nas coisas humanas, em todo lugar há pessoas simpáticas e pessoas antipáticas. Isso vale para a humanidade inteira, isso vale também para nós de algum modo. Preciso colocar essa nota porque ela permitirá falar mais livremente durante minha exposição.
O problema não é que a Fraternidade São Pio X possa “criticar os institutos Ecclesia Dei”. No momento atual, é o próprio Papa Francisco quem parece estar cansado dos institutos Ecclesia Dei e, em geral, de todos os padres ligados à missa tridentina. Isto nos brinda a oportunidade de retornarmos aos começos da Ecclesia Dei: O texto de 2 de julho de 1988[1] contém a condenação da Fraternidade São Pio X, a condenação de Dom Lefebvre – e estende a mão aos institutos Ecclesia Dei.
Ainda que seja conhecido, vale a pena ler algumas passagens para comentá-lo à luz dos últimos acontecimentos.
O motu proprio Ecclesia Dei afflicta
Antes de tudo, a razão teológica pela qual Dom Lefebvre e a Fraternidade foram condenados: “A raiz deste ato cismático pode localizar-se numa incompleta e contraditória noção de Tradição. Incompleta, porque não tem em suficiente consideração o caráter vivo da Tradição, ‘que ― como é claramente ensinado pelo Concílio Vaticano II ― sendo transmitida pelos Apóstolos ― progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo. Com efeito, progride a percepção tanto das coisas como das palavras transmitidas, quer mercê da contemplação e estudo dos crentes, que as meditam no seu coração, quer mercê da íntima inteligência que experimentam das coisas espirituais, quer mercê da pregação daqueles que, com a sucessão do episcopado, receberam o carisma da verdade.’
“Mas é sobretudo contraditória uma noção de Tradição que se opõe ao Magistério universal da Igreja, do qual é detentor o Bispo de Roma e o Colégio dos Bispos. Não se pode permanecer fiel à Tradição rompendo o vínculo eclesial com aquele a quem o próprio Cristo, na pessoa do Apóstolo Pedro, confiou o ministério da unidade na sua Igreja.”
Todo o problema está aqui.
O ato de Dom Lefebvre em 1988 – como toda a história da Fraternidade São Pio X – é um ato de fidelidade à Igreja; é um ato de fidelidade ao Papa, à hierarquia, às almas. Independentemente do que as autoridades romanas possam dizer ou não dizer, pensar ou deixar de pensar.
Pelo contrário, com a noção de Tradição viva, onde chegamos? Era difícil prevê-lo em 1988. Mas chegamos, agora, à Amoris Laetitia, chegamos ao culto da Terra, chegamos à Pachamama. E há outras consequências que ainda não conhecemos, porque com essa noção evolutiva, dinâmica, da Tradição, pode-se chegar a qualquer resultado. Estamos numa outra dimensão; estamos amputados dessa Tradição que se enraíza nos Apóstolos, na Revelação, e que é ela mesma uma fonte da Revelação.
No citado texto, um pouco depois, encontramos a mão estendida do Sumo Pontífice João Paulo II àqueles que iriam se tornar os “Ecclesia Dei”:
“Nas atuais circunstâncias, desejo sobretudo dirigir um apelo, ao mesmo tempo solene e comovido, paterno e fraterno, a todos aqueles que até agora, de diversos modos, estiveram ligados ao movimento do Arcebispo Lefebvre, a fim de que cumpram o grave dever de permanecerem unidos ao Vigário de Cristo na unidade da Igreja Católica, e de não continuarem a apoiar de modo algum esse movimento. Ninguém deve ignorar que a adesão formal ao cisma constitui grave ofensa a Deus e comporta a excomunhão estabelecida pelo Direito da Igreja.
A todos estes fiéis católicos, que se sentem vinculados a algumas precedentes formas litúrgicas e disciplinares da tradição latina, desejo manifestar também a minha vontade ― à qual peço que se associem os Bispos e todos aqueles que desempenham na Igreja o ministério pastoral ― de lhes facilitar a comunhão eclesial, mediante as medidas necessárias para garantir o respeito das suas justas aspirações”.
Vê-se aqui o problema: a unidade se dá na fé. No entanto, a unidade não pode acontecer por causa de um indulto, de um privilégio que visa para uns uma coisa, e para outros o oposto. Para alguns, padres e fiéis que querem guardar a missa tridentina, é um meio de guardar, de alguma maneira, a Tradição; mas para as autoridades romanas – que hoje se expressam mais abertamente – é um meio para lhes fazer chegar, progressiva e completamente, à “Igreja conciliar”, a esse modo próprio de pensar da Igreja de hoje. Tudo isso foi estabelecido, prometido à luz do protocolo assinado no dia 5 de maio de 1988[2] pelo cardeal Ratzinger e por Dom Lefebvre.
Consideremos agora a sabia posição de Dom Lefebvre:
O mencionado protocolo foi assinado por Dom Lefebvre e, de alguma maneira, aceito por algumas horas. Porém, após ter passado a madrugada em oração, compreendeu – na oração e na solidão – o que Deus pedia. A decisão de voltar atrás com o protocolo, tomada em algumas horas, decisão de tanta importância perante à história, perante à Igreja e perante às almas, as comunidades “Ecclesia Dei” podem hoje compreendê-la, depois de mais de 30 anos.
“A experiência Bento XVI”
Os nomes são importantes, e mesmo se já foi citado na parte da manhã, é importante retornar ao que chamo, para simplificar, “a experiência Bento XVI”: Summorum Pontificum,[3] que é necessário compreender à luz da “hermenêutica da continuidade”, esse eixo central do pontificado de Bento XVI.
Concedeu-se à missa tridentina, então, um direito muito mais amplo. Isso permitiu que alguns padres a descobrissem, e ao celebrá-la – é preciso reconhecê-lo – muitos padres começaram a se questionar acerca de seu sacerdócio, acerca do Concílio, acerca da missa nova. É justamente tal processo que causou medo ao Vaticano. Mas a perspectiva desse motu proprio, precária, está fundada em um erro: duas formas do mesmo rito e, sobretudo (acrescento eu), a ilusão de melhorar algo da crise atual sem debater as causas da crise. Tal foi o erro de Bento XVI, a limitação de seu motu proprio: isso não poderia ter continuidade; isso poderia prosseguir por certo tempo mas, cedo ou tarde, iria acontecer o que acontece agora.
Não podemos corrigir os erros sem reconhecê-los como tais, e sem rejeitá-los. É capital. A hermenêutica da continuidade buscou “superá-los”, criar atalhos como solução. A Igreja, aqui, tem uma lição para o futuro.
Quantas vezes coloca-se (e também nós) a questão: quando poderemos corrigir o Concílio? Será necessário rejeitar o Concílio? Acaso poderemos esquecê-lo? Poderíamos salvar tudo o que há de bom no Concílio? Afinal, o Concílio contém somente erros.... Aqui, é necessário ser realista. É verdade que o Concílio não só contém erros, isso é metafisicamente impossível. O erro está sempre misturado com a verdade. Mas sejamos honestos e realistas. O que define o Concílio, o que é a espinha dorsal do Concílio, o verdadeiro Concílio, é o Concílio da missa nova, é o Concílio do ecumenismo, é o Concílio da dignidade humana, é o Concílio da liberdade religiosa. Esses são os elementos, esses os erros que mudaram a Igreja. Eis o verdadeiro concílio, o concílio real, o concílio que transtornou a Igreja!
Tudo o mais, contido nos documentos conciliares – aqui simplifico um pouco – todas as citações dos Padres da Igreja, as citações dos concílios precedentes são, de fato, uma moldura – são as margens – de todos esses elementos que são os elementos centrais. É necessário ser honesto: o concílio real deve ser rejeitado. A Igreja não pode se regenerar se não o rejeitarmos. Tivemos a experiência de Bento XVI, e isso não pode acontecer: colocar a verdade ao lado do erro, colocar as duas missas uma ao lado da outra para que uma pudesse “fecundar” a outra, “ a reforma da reforma na continuidade”... É uma ilusão. O sabemos muito bem. Conhecemos os princípios teoricamente, especulativamente; mas aqui temos uma prova concreta, extremamente útil, para o porvir.
O erro e a verdade não podem andar juntos
A comissão pontifícia Ecclesia Dei, encarregada de supervisionar e de guiar os institutos Ecclesia Dei, foi suprimida há exatamente três anos, em janeiro de 2019. Citarei um trecho da carta do Papa comunicando tal decisão:
“Considerando alteradas hoje as condições que tinham levado o santo Pontífice João Paulo II à instituição da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei; constatando que os Institutos e as Comunidades religiosas que celebram habitualmente na forma extraordinária encontraram hoje uma sua estabilidade de número e de vida.”
Em outros termos, os institutos Ecclesia Dei foram suficientemente reintegrados, e é por causa disso que foi suprimida a Comissão que, supostamente, lhes protegia.
Citaremos mais uma vez Monsenhor Arthur Roche[4], prefeito da Congregação para o Culto Divino, porque jamais uma autoridade oficial foi tão explícita e clara. Em sua resposta ao cardeal Vincent Nichols[5], arcebispo de Westminster (Inglaterra), Roche escreveu:
“A falsa interpretação e a promoção do uso desses textos [litúrgicos tradicionais], após concessões somente limitadas pelos pontífices anteriores, foi usada para encorajar uma liturgia que diverge com a reforma conciliar (e que, de fato, foi ab-rogada pelo Papa São Paulo VI), e uma eclesiologia que não é parte do Magistério da Igreja. [...] É evidente que o principal comentário acerca da nova lei que governa a possibilidade do uso dos ritos litúrgicos anteriores – por meio de uma concessão excepcional, e não por via de promoção, é a carta do Papa Francisco para os Bispos, que acompanhou o texto [do Motu próprio]. É também evidente que essas concessões excepcionais deveriam ser dadas somente àqueles que aceitam a validade e legitimidade da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, e o Magistério dos Sumos Pontífices. Tudo o que está contido na nova lei é orientado ao retorno e à estabilização da liturgia tal como decretada pelo Concílio Vaticano II”. É claro o suficiente.
Voltemos alguns anos para trás. Lembro-me que, em 2016, o bispo encarregado por Roma de negociar com a Fraternidade São Pio X disse: “Não vejo por que é necessário lhes impor o Concílio. No fim das contas, não se pergunta aos fiéis que vão à missa e à paróquia se aceitam o Concílio. Por que deveria ser necessário para vocês”? É o inverso do que afirma agora Mons. Roche. Porque, de fato, em uma negociação ouvem-se coisas que não correspondem exatamente à realidade, ou ao menos promessas que não podem ser cumpridas.
Qual é o ponto central de tudo o que foi dito hoje, de tudo o que foi sublinhado? Qual é o intuito principal de Traditionis Custodes? Podemos resumi-la neste princípio: a missa tridentina não pode ser celebrada como a expressão da verdadeira Igreja, da verdadeira fé. E acrescentemos: pode-se conceder sua celebração à condição de que ela não seja celebrada pelo que ela é na realidade. Eis o paradoxo, todo o problema está aqui.
Voltemos à situação de 1988 para os Institutos Ecclesia Dei. Podemos dizer que se encontram perante uma escolha; hoje, mais do que outrora, é uma escolha premente entre duas opções:
- Ou guardar a liberdade incondicional de professar a fé integralmente, usando de meios proporcionais, e deixando à Providência cuidar das consequências. É a escolha que fez a Fraternidade São Pio X com Dom Lefebvre;
- Ou submeter a possibilidade [de celebrar a missa tridentina] à vontade de uma autoridade que procede num sentido oposto a essa mesma missa, e que admite fazê-lo.
A segunda opção é um impasse; é impossível avançar sem a união das vontades. Não é possível unir duas entidades cujos fins se opõem. Cedo ou tarde chegarão à situação da crise atual. Dá-se um privilégio, um indulto; cria-se assim uma situação particular, instável – e aguarda-se (por exemplo) o tempo de uma geração, esses 30 anos. Contudo, dentro do que é concedido, alguns veem um significado específico e um propósito determinado, enquanto os outros tem o propósito oposto. Não podemos querer simultaneamente o bem das almas pela Tradição, e uma nova Igreja sem a Tradição.
A história é mestra da vida
A história é mestra da vida, de prudência; e os Institutos Ecclesia Dei estão, atualmente, perante essa escolha. Contudo, têm uma vantagem: é a perspectiva que Dom Lefebvre não tinha em seu tempo. Cinquenta anos depois, os homens de boa vontade têm elementos suplementares para avaliar o que acontece dentro da Igreja, para avaliar até mesmo a longo prazo as consequências dos princípios que foram colocados.
Aqui, não podemos deixar de falar algo da decisão, da escolha que Dom Lefebvre tomou há mais de trinta anos, em 1988, no momento mais crucial da história da Fraternidade São Pio X.
Não se consegue explicar humanamente – com a experiência, a sabedoria da idade, a cultura, o conhecimento dos homens – não podemos explicar a sabedoria da decisão que tomou em 1988. Isso não basta. É um sinal infalível de santidade a capacidade de se deixar guiar pelo Espírito Santo, de enxergar com clareza enquanto várias interpretações podem ser concebidas, poderiam ser consideradas.
Ter a coragem de tomar uma tal decisão que poderia condicionar para sempre a Fraternidade, sua pessoa, e de certo modo a Igreja, a Tradição na Igreja; tomar essa decisão sozinho, perante Deus na oração, decisão na qual percebemos (mais de trinta anos depois) a pertinência, a exatidão, a profundeza do olhar! Tudo isso não se pode explicar sem recurso ao dom do Espírito Santo que é o conselho, para o qual uma alma é dócil na medida em que é santa, na medida em que é pura. É a história, mestra da vida, que nos dá a resposta.
Apoiar-se na exigência da fé
Voltemos aos Institutos Ecclesia Dei. Após o tempo de uma geração, como já dissemos, tiveram um recuo mais do que suficiente, e encontram-se hoje em dia perante essa escolha, que não é entre Summorum Pontificum e Traditionis Custodes. É preciso abandonar a falsa lógica. Hoje, uma continuidade profunda entre essas diferentes medidas foi evidenciada; mesmo se materialmente são bem diferentes, apresentam um fundo comum. A escolha não é entre Summorum Pontificum e Traditionis Custodes; entre indulto A, ou indulto B, ou privilégio C. Deve-se sair de tal perspectiva.
A escolha é entre a declaração de 1974[6] – declaração de adesão e de fidelidade incondicional e livre à Roma eterna – e essa concessão de um indulto particular, que já conhecemos, e cujas consequências também conhecemos. Eis aqui o risco de um impasse definitivo para os Institutos Ecclesia Dei. Não se devem apoiar nos direitos adquiridos, deve-se apoiar nas exigências da fé.
Por quê? Alguém pode ter um direito particular, um privilégio[7]; pode ter um “carisma” em sua congregação; mas Roma pode mudar as constituições. Mais ainda, Roma pode suprimir as congregações: suprimiu os Jesuítas, suprimiu a Fraternidade São Pio X, ela pode suprimir sem problemas – omito os nomes por respeito – outras congregações, outros institutos. Roma pode fazê-lo. E se se luta durante décadas unicamente apoiado nos privilégios específicos vinculados a congregações particulares, tudo isso poderá ser suprimido.
O que é eterno e que faz nosso combate invencível? É a fé. Verbum Domini manet in æternum (1 Pe 1, 25)[8].
É a fé o fundamento necessário ao combate atual, ao combate pela Tradição; e não um privilégio.
O uso instrumental da missa de São Pio V
Há um outro aspecto em Traditionis Custodes que merece ser observado. Trata-se da acusação de utilizar o rito tradicional de modo instrumental: “Vocês utilizam esse missal como bandeira de outra Igreja, de outra fé, que vocês chamam de verdadeira fé”. É a acusação que faz o Papa Francisco. Mas, quem faz deste missal um uso instrumental?
Como vimos de manhã, a missa tridentina em si mesma, intrinsecamente, expressa uma outra concepção da Igreja, uma outra concepção da vida espiritual, uma outra concepção do sacerdócio. É inevitável. E é por isso que, de fato, era preciso substituí-la por uma outra missa, que pudesse corresponder a uma nova concepção da Igreja, da vida espiritual e do sacerdócio. O uso do missal tradicional na Igreja não é, portanto, instrumental; foi o uso normal da missa, alimentando a concepção católica da vida cristã.
Todavia, há, sim, um uso instrumental do missal de São Pio V, que foi feito pelas autoridades romanas que o utilizaram para seus fins: para colocar no eixo aos católicos conservadores. Ora, não se brinca com o missal; não se brinca com os sacramentos; não se pode dizer: “sim, daremos a vocês esse missal durante trinta, quarenta anos, para fazer com que passem gradualmente às ideias atuais na Igreja... e agora essa caminhada acabou”.
Não se pode utilizar o missal desse modo. Quero dizer que é um uso homeopático, ou talvez um abuso homeopático. O princípio da homeopatia é de curar o mal com o princípio mesmo do mal, para provocar no sistema imunológico uma reação gradual ao mal que se quer curar. As autoridades romanas fizeram o mesmo com o missal de São Pio V, eles reconhecem. Mas não se brinca com isso, não se pode utilizar a missa - considerada como um problema - para curar esse problema entre os fiéis. É um uso que verdadeiramente podemos considerar instrumental, o que é inadmissível.
Há uma única redenção
Podemos concluir. Como transmitir a Tradição? Como guardá-la? Qual é o papel da Fraternidade São Pio X?
Humanamente, não somos melhores do que os outros. Humanamente, não merecemos mais do que os outros. Contudo, nossa força, que não está em nossas qualidades, está fora de nós. Nossa força está naquilo que não podemos renunciar. Nossa força está na fé, na Tradição. Nossa força está na missa, na missa como bandeira e como estandarte dessa fé e dessa Tradição.
Em seu motu proprio, o Papa Francisco disse algumas verdades, tomado o conteúdo em abstrato. É verdade que a Igreja tem uma única missa. É verdade que a Igreja tem um só culto. Mas esse único culto da Igreja não é a missa nova, eis o problema.
Esse culto único da Igreja está na missa de sempre. Por que? Porque há apenas uma redenção.
Vejam como, no Antigo Testamento, tudo converge para a Cruz, para o Calvário. Todos os diferentes sacrifícios que os judeus ofereciam, de um modo ou de outro, representam o sacrifício da Cruz que, em sua perfeição única, resume a todos. Toda a vida de Nosso Senhor aponta para a Cruz, aponta para a Paixão; é por isso que tem uma unidade extraordinária. Se posso me exprimir de tal modo, toda a vida de Nosso Senhor está construída inteiramente ao redor de uma única ideia: chegar à Cruz. E esse sacrifício da Cruz é tão perfeito que Cristo o oferece uma única vez.
Ora, a vida da Igreja, como a vida de cada alma em particular, nada mais é do que o prolongamento dessa ideia central que tudo unifica. A vida da Igreja e das almas resgatadas é uma pela unidade mesma da Cruz, da redenção. Há somente um Cristo, uma única Cruz pela qual podemos adorar a Deus e ser santificados. E, portanto, é necessariamente essa mesma unidade que encontramos na missa, nessa aplicação da redenção à vida da Igreja, à vida das almas. Porque há uma única redenção, que é perfeita, também há uma única maneira de perpetuar essa redenção, de a atualizar no tempo para aplicá-la às almas: há somente uma única missa católica. Não há duas. Esse prolongamento de nossa redenção é uno porque perpetua, simplesmente, a intenção única e central que jorrava da alma de Nosso Senhor, e que unificava toda a sua vida.
Então, o que queremos? O que quer a Fraternidade São Pio X? Queremos a Cruz. Queremos a Cruz de Nosso Senhor. Queremos celebrar essa Cruz, e queremos entrar no mistério dessa Cruz. Queremos fazer nossa a Cruz. Não há duas cruzes possíveis, e não há duas redenções ou duas missas possíveis.
Qual é a alternativa a essa única via possível aos cristãos? É a adequação inútil, frustrante, a uma natureza humana que, na verdade, é sempre a mesma. Dito de outro modo, é essa moderna ideia de que é necessário se adaptar a uma natureza humana que muda, que tem sempre necessidade de alguma outra coisa. Mas essa ideia é falsa. Por que? Porque as fontes do pecado são sempre as mesmas e podem ser curadas sempre, e unicamente, da mesma maneira.
Essa mentira – porque é uma mentira – que o homem moderno deve ser buscado e curado de modo distinto produz frutos da mentira. Produz a desintegração da vida da Igreja. Sem essa aplicação da redenção, a vida da Igreja perde seu princípio de unidade.
É nesse sentido que a missa é verdadeiramente nossa bandeira, nosso estandarte. E, numa batalha, o estandarte é a última coisa que deixamos cair.
Há uma última coisa, essencial, que a Fraternidade deve buscar. Queremos essa missa não somente para nós mesmos, mas a queremos para a Igreja universal. Não queremos um altar lateral. Não queremos o direito de entrar com nosso estandarte num salão em que tudo é permitido. Não!
Queremos essa missa para nós e, ao mesmo tempo, para o mundo inteiro. Não queremos um privilégio. É um direito para nós e para todas as almas, sem distinção. É por isso que a Fraternidade São Pio X continua e continuará a ser uma obra da Igreja. Porque ela visa o bem da Igreja; e não um privilégio particular. Deus escolherá o momento, o modo, a gradação, as circunstâncias. Mas no que depender de nós, queremos essa missa imediatamente, incondicionalmente e para todos. Sem entrar numa perspectiva demasiado humana que busca um privilégio particular. Sem entrar numa estratégia em que se começa a negociar: pede-se uma igreja, um horário, o uso do manípulo, do barrete, a Semana Santa de São Pio X... Não! Não queremos ter esse espírito.
Queremos somente duas coisas: a fé e a missa. A doutrina e a cruz que alimentam, na alma, a vida espiritual e a vida moral. Nós as queremos agora, incondicionalmente e para todos. E se guardarmos essa perspectiva, a Fraternidade São Pio X será sempre e perfeitamente uma obra da Igreja, que age no coração mesmo da Igreja, e que não tem outra finalidade que buscar a salvação das almas – na Igreja e pela Igreja.
Para conservar, nesta conferência, seu caráter próprio, manteve-se o estilo oral.
[1] Carta apostólica Ecclesia Dei afflicta do Sumo Pontífice João Paulo II sob forma de motu proprio, de 2 de julho de 1988.
“É instituída uma Comissão, com a tarefa de colaborar com os Bispos, com os Dicastérios da Cúria Romana e com os ambientes interessados, a fim de facilitar a plena comunhão eclesial dos sacerdotes, dos seminaristas, das comunidades ou de cada religioso ou religiosa até agora ligados de diversos modos à Fraternidade fundada por Mons. Lefebvre, que desejem permanecer unidos ao Sucessor de Pedro na Igreja Católica, conservando as suas tradições espirituais e litúrgicas, de acordo com o Protocolo assinado, a 5 de Maio passado pelo Cardeal Ratzinger e por Mons. Lefebvre” (Ecclesia Dei afflicta, n° 6 a).
[2] Entre os dias 15 de abril e 5 de maio de 1988, Dom Lefebvre estima ter conseguido um bom acordo que assegure a estabilidade e a perenidade de sua obra. Foi assim que participou, no dia 4 de maio, de um último colóquio em Albano, e que assinou no dia 5 de maio, em Roma, a declaração do protocolo de acordo, na festa de São Pio V. O protocolo de acordo que Dom Lefebvre aceitou assinar previa que “por razões práticas e psicológicas, mostrou-se a utilidade da consagração de um bispo membro da Fraternidade”. Nenhuma data foi prevista. E, no momento da assinatura do protocolo, o cardeal Ratzinger remeteu à Dom Lefebvre uma carta, datada de 28 de abril de 1988, que semeou a confusão e o engano no espírito do homem da Igreja.
No dia seguinte, 6 de maio, Dom Lefebvre escreveu ao cardeal Ratzinger tais linhas: “Ontem, foi com grande satisfação que dei minha assinatura ao protocolo elaborado nos dias precedentes. Mas pudestes, vós mesmo, constatar a profunda enganação na leitura da carta que me enviastes com a resposta do Santo Padre acerca do assunto da consagração episcopal. Foi-me pedido para adiar a consagração para uma data ulterior não especificada. Será a quarta vez que adiarei a data de consagração para mais tarde. A data de 30 de junho foi apontada numa de minhas cartas anteriores como a carta limite. Enviei-vos um primeiro documento acerca dos candidatos. E restam menos de dois meses para estabelecer o mandato. Dadas as circunstâncias particulares dessas proposições, o Santo Padre pode facilmente aliviar o procedimento para que o mandato nos seja comunicado até meados de junho. Se a resposta for negativa, verei-me obrigado, em consciência, a proceder com a consagração, apoiando-me no acordo feito com a Santa Sé no protocolo para a consagração de um bispo membro da Fraternidade”. Ver: https://fsspx.news/es/news-events/news/hace-30-años-la-operación-de-sup…
[3] Carta apostólica Summorum Pontificum do Sumo Pontífice Bento XVI sob forma de motu proprio, de 7 de julho de 2007.
[4] Depois da demissão do Cardeal Robert Sarah, devido à idade, no dia 20 de fevereiro de 2021, o cargo de prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos ficou vacante. No dia 27 de maio de 2021 o Papa Francisco nomeou como novo prefeito aquele que era então o secretário deste dicastério encarregado da liturgia. Nascido em 1950 na Inglaterra, formou-se na Espanha antes de sua ordenação sacerdotal em 1975, incardinado na diocese de Leeds (Liverpool, Inglaterra). De 1991 a 1996, viveu em Roma, estudando na Gregoriana e como diretor espiritual do Colégio Inglês. Em 1996, tornou-se secretário geral da conferência episcopal da Inglaterra e do País de Gales.
[5] Numa carta de 28 de julho de 2021, o Cardeal Vincent Nichols pediu esclarecimentos acerca da aplicação de Traditionis Custodes, em seis questões principais. Essa carta foi publicada pelo site gloria.tv no dia 5 de novembro de 2021, junto com a resposta de Mons. Roche numa carta de 4 de agosto. A troca de cartas foi confirmada pelo cardeal Nichols à Catholic News Agency, no dia 8 de novembro de 2021.
[6] Declaração de Dom Lefebvre de 21 de novembro de 1974, que começa com: “Aderimos com todo o coração e com toda a nossa alma à Roma católica, guardiã da fé católica e das tradições necessárias para a conservação dessa fé; à Roma eterna, mestra da sabedoria e da verdade.” https://fsspx.org/pt/declaração-do-ano-de-1974
[7] Em latim, uma privata lex, uma lei privada.
[8] “A palavra do Senhor permanece eternamente”.